Ainda o Acordo Ortográfico

Continua-se a discutir por este país fora a questão da aplicação do Acordo Ortográfico; regozijo-me com a existência de jornais (como o Público) e mesmo de algumas estações de TV que se recusam, como forma de protesto, de o aplicar. Cada vez são menos, é certo, e cada vez mais alunos aprendem a ortografia arrevezada do «novo» AO, pelo que com o tempo a batalha poderá estar perdida, especialmente porque nesta época toda a gente se preocupa com a crise e não com a língua e a cultura portuguesas.

Como referência, e para quem nunca o tenha lido, podem obter uma cópia do Acordo Ortográfico no site da Priberam.

A minha «guerra pessoal» não tem nada a ver com «não gostar» do Acordo Ortográfico; não creio que uma opinião pessoal sobre se «gosto» ou «não gosto» tenha qualquer importância. Em vez disso, a minha fundamentação contra o Acordo Ortográfico baseia-se em dois pilares:

  1. Há desonestidade intelectual na justificação para a sua adopção (explicarei isto em mais detalhe mais abaixo)
  2. O processo para a sua redacção e implementação não foi democrático, em especial porque não teve em conta as centenas de milhares de pessoas em Portugal e os milhões no Brasil que se pronunciaram publicamente contra o acordo.

Vejamos em mais pormenor o primeiro ponto. Já escrevi sobre isto em vários comentários e mensagens em toda a ‘net, mas o problema de o fazer em redes sociais é que a argumentação perde-se e dispersa-se e é difícil de encontrar.

A lei que promulga o Acordo Ortográfico, por si só, nem é uma má lei. Não modifica muita coisa. Remete tudo para um anexo, que foi alegadamente elaborado pela Academia das Ciências de Lisboa e Academia Brasileira de Letras, provavelmente em conjunto com as suas delegações dos CPLP, como é referido no preâmbulo da Resolução da Assembleia da República n.º 26/9.

Porquê delegar tal responsabilidade na Academia das Ciências de Lisboa e Academia Brasileira de Letras? Esta é a primeira questão que deve ser colocada. Por razões históricas, pelo menos desde 1931, os acordos ortográficos são propostos pela Academia das Ciências de Lisboa e pela Academia Brasileira de Letras. Até aqui tudo bem, mas há que ter em conta que (pelo menos no caso português; desconheço o caso brasileiro), se tratam de entidades fechadas ao público — no sentido em que apenas os seus membros podem participar nas decisões. Quer isto dizer que aqueles que vão usar a língua portuguesa no seu dia-a-dia não se podem manifestar junto da entidade que vai passar uma «lei» — o AO é, para todos os efeitos, uma lei — e que esta não é debatida publicamente. Quando a lei refere

Considerando que o texto do Acordo que ora se aprova resulta de um aprofundado debate nos países signatários […]

não é explicado que esse «aprofundado debate» decorreu às portas fechadas entre alguns ilustres auto-proclamados «especialistas» da praça, sem recurso a mais ninguém, excepto eventualmente um político ou outro e talvez alguns donos de editoras de manuais escolares.

Não tenho nada contra obter opiniões de «especialistas». Por exemplo, uma lei sobre a aplicação de determinado tratamento médico deve ser obviamente debatida por licenciados em Medicina, não por testemunhas de Jeová (que se opõem à maior parte dos tratamentos invasivos…) ou por curandeiros e «endireitas». Muito menos pela população em geral. Estamos a falar de conhecimento especializado que requer décadas de estudo e prática para obter uma compreensão mínima do assunto. O papel do legislador, nesse caso, é recolher informação e obter recomendações. Se o assunto requer conhecimentos científicos, é de esperar que qualquer parecer elaborado por cientistas seja, efectivamente, sujeito ao escrutínio dos seus pares usando critérios científicos que sejam falsificáveis — como tudo em ciência.

No caso da língua portuguesa, há um problema agravado. Não são os «especialistas» que dizem (ou que sabem…) como é que 240 milhões de pessoas falam e escrevem todos os dias. Quanto muito, podem recolher informação e sistematizá-la. Embora as regras da linguagem sejam lógicas, como qualquer especialista em inteligência artificial e linguagem natural poderá atestar, não é óbvio como é que todas as possibilidades de emprego da linguagem emergem desse conjunto de regras. Assim, pode-se obter uma representação da ortografia de forma sistemática e o seu registo segundo regras, mas esta representação será necessariamente sempre incompleta — não se pode consultar os 240 milhões de falantes de língua portuguesa sistematicamente e pedir-lhes que escrevam os 110.000 vocábulos da língua portuguesa (pelo menos os que estiveram em consideração no estudo para o Acordo Ortográfico). Pode-se, isso sim, trabalhar por amostras como em qualquer estudo científico, e obter regras a partir dessas amostras, e depois validar a sua aplicação de acordo com os procedimentos habitualmente usados em estatística. Tudo isto são procedimentos padronizados em ciência, que certamente qualquer ilustre membro da Academia das Ciências de Lisboa muito bem conhecerá.

No entanto, se isso foi feito, não consta de todo no texto do Acordo Ortográfico!

Então quais foram os critérios apresentados para as alterações, aparentemente aleatórias, do texto? Não se pode sequer falar de «aproximação ao português do Brasil», como a maioria dos portugueses gosta de dizer. O AO é refutado igualmente por muitos movimentos de protesto brasileiros — alguns dos quais alegam ter milhões de pessoas contra o AO (contrastando com as centenas de milhar do lado de cá do Atlântico, pelo menos as iniciativas que surgem na ‘net e que, infelizmente, de pouco ou nada servem — a suspensão da entrada em vigor do Acordo Ortográfico requer em Portugal de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos o que precisa de 35.000 assinaturas em papel — ao contrário das petições, que podem ser feitas via Internet). Mas tal é o protesto do lado dos nossos irmãos brasileiros que o Congresso brasileiro, em 2009, considerou a hipótese de rever o acordo. E cito:

Não houve uma discussão democrática e aberta.

— Ernani Pimentel, movimento Acordar Melhor

Ou seja, é o próprio Brasil que fica chocado com a ideia de que eles, brasileiros, de certa forma são vistos como querendo impôr um Acordo Ortográfico aos restantes países falantes de português — quando eles próprios também não querem este acordo! E, ainda mais do que nós, criticam a falta de transparência e de democracia no processo todo. Diria «mais do que nós» porque se calhar do lado de cá do Atlântico nem são esses os argumentos apresentados, mas sim coisas que têm a ver com «gosto pessoal» e «imposição das editoras (brasileiras?)» (desmontarei esta teoria mais abaixo).

Ora eu por mim até estaria disposto a aceitar um qualquer «acordo ortográfico», desde que se assumissem, no mínimo dos mínimos, os seguintes pressupostos:

  • Discussão livre e aberta entre todos os 240 milhões de falantes de português. Não apenas «alguns». Envolvimento de mais organizações no processo: professores, autores, e jornalistas, por exemplo (e não só editoras!). Quase todas as organizações repudiam o acordo, seja de que lado do Atlântico for, e fazem-no publicamente com veemência. Como é possível então que tenha havido «aprofundado debate», se ninguém publicou as actas do mesmo, nem se sabe onde decorreu, excepto eventualmente num ou outro programa de TV, e sempre a posteriori à decisão tomada?
  • Processo democrático. Se 240 milhões de pessoas falam português, estes 240 milhões devem ter uma palavra a dizer na forma como escrevem a sua língua. A isto chama-se pura e simplemente — referendo. Seria talvez o referendo mais abrangente no espaço lusófono, atravessando nações, continentes e oceanos. Não seria um excelente exemplo a dar a todo o mundo? Que sabemos democraticamente preservar um elemento fundamental da nossa cultura? E se o resultado for uma enorme abstenção ou um rotundo NÃO! — aceite-se a decisão do povo e continue-se o debate. Falamos português há mais de 850 anos, não há necessidade de «apressar» o processo…
  • Critérios científicos validáveis e/ou falsificáveis. Isto é um pouco obscuro, mas se se invoca a «autoridade» da Academia de Ciências, espera-se que esta, para justificar as suas decisões, utilize processos científicos. Certo? Pois.

Então vamos lá a ver os «critérios» usados pela Academia de Ciências (não li o texto da lei brasileira que aprova o acordo no Brasil, pelo que não sei se os anexos são os mesmos, e se a Academia Brasileira de Letras simplesmente aceitou a argumentação da Academia de Ciências de Lisboa sem a contestar; presumo que não, mas não sei).

Cito o seguinte excerto:

As palavras afectadas por tal supressão representam 0,54% do vocabulário geral da língua, o que é pouco significativo em termos quantitativos (pouco mais de 600 palavras em cerca de 110000).

Note-se a expressão pouco significativo. É essa utilização que é intelectualmente desonesta, porque se baseia no pressuposto quantitativo, que aparentemente justifica que as alterações se devam/possam fazer por serem justamente pouquíssimas palavras as que são afectadas. Mas é pouco significativo para quem?

Ironicamente, o autor do anexo (não identificado) reconhece imediatamente a seguir que qualitativamente, no entanto, o impacto é grande!

Este número é, no entanto, qualitativamente importante, já que compreende vocábulos de uso muito frequente (como, por exemplo, acção, actor, actual, colecção, colectivo, correcção, direcção, director, electricidade, factor, factura, inspector, lectivo, óptimo, etc.).

Sabendo que uma grande parte da população não usa 110.000 vocábulos diariamente — mas talvez apenas uns 5 ou 6 mil — então o que este acordo ortográfico está a afirmar é o seguinte: «bom, não vale a pena chatearem-se com o AO porque só mudamos umas 600 palavras. O facto de que essas 600 palavras representam talvez 10% de todos os vocábulos vulgarmente utilizados pela esmagadora maioria da população falante da língua portuguesa é irrelevante (para nós, membros da Academia de Ciências)».

Ora é isso que é intelectualmente desonesto: considerar o impacto qualitativo da mudança como importante, mas depois aplicá-la à mesma, porque quantitativamente —assumindo que a população usa diariamente 110.000 vocábulos, o que é ridículo! — é pouco significativo.

Se esta Lei do Acordo Ortográfico fosse publicada numa revista científica, seria logo «chumbada» à partida por usar justificações não relevantes, por cometer várias falácias lógicas, e finalmente pela totalidade de ausência de critérios científicos para as justificar. Aliás, a ironia é que o autor desconhecido do texto até admite a diferença entre o impacto quantitativo (pequeno) e o qualitativo (enorme!), mas nem sequer se justifica concretamente que foi o critério quantitativo que prevaleceu. Aliás, eu não estive obviamente presente na elaboração do dito acordo, mas esta redacção tresanda a «comentário feito a posteriori» para parecer que existe alguma «cientificidade» no método utilizado… mas quando o próprio autor nem sequer diz qual foi o critério que prevaleceu, mas simplesmente enumera factos, então temos de assumir que não houve na realidade nenhum critério lógico, válido ou sequer científico na elaboração do Acordo Ortográfico, mas apenas uma «opinião» de um conjunto de «eruditos» que tiveram procuração e carta branca para fazer o que lhes apetece.

Sendo assim, em consciência, não posso aceitar a credibilidade da Academia das Ciências para saber o que é importante ou não num Acordo Ortográfico. Ora mas se não tem credibilidade, então porque é que é a Academia das Ciências a estabelecer o AO? Quando se contratam peritos para auxiliar o legislador nas suas funções, presume-se que os peritos, de facto, o sejam. E em ciência podemos analisar o resultado dos peritos, discuti-lo, e abertamente contestar resultados «forçados» e rejeitar uma tese ou teoria se os critérios que conduzem à mesma revelam-se errados (mesmo que apenas parcialmente errados). Ou seja: o Acordo Ortográfico não foi o resultado de uma análise científica, mas sim de um conjunto de «opiniões» a priori, que depois usaram uma argumentação (fraca e contraditória!) para tentar «cientificar» a opinião. Isto é desonestidade intelectual.

E, como cidadão, tenho então de condenar politicamente quem colocou a decisão política nas mãos de quem não tem credibilidade científica; como cidadão, denuncio publicamente o caso, e, como estamos em democracia, até votei em representantes diferentes dos que aprovaram o AO, na esperança de que estes pelo menos estejam abertos a uma discussão séria sobre o assunto… no fundo, não quero mais do que os brasileiros pediram em 2009: contestando a seriedade do trabalho que conduziu ao AO, pediram ao Congresso que o reveja, a que este alegadamente acedeu. Também isso eu peço aos nossos representantes democraticamente eleitos na Assembleia da República.

No fundo qual é a questão? Não vou especular na «teoria da conspiração» de que as editoras brasileiras passariam a poder invadir o mercado português sem necessitar de se preocupar com a dupla grafia. Essa «teoria da conspiração» pode ser desmontada pelo facto de continuar a haver dupla grafia. Há é menos dupla grafia:

O número de palavras abrangidas pela dupla grafia é de cerca de 0,5% do vocabulário geral da língua, o que é pouco significativo (ou seja, pouco mais de 575 palavras em cerca de 110000), embora nele se incluam também alguns vocábulos de uso muito frequente.

Ou seja, por um lado, é sempre «pouco significativo» mudar a grafia de 500-600 palavras; mas embora num dos casos (acção, actor, actual, colecção, colectivo, correcção, direcção, director, electricidade, factor, factura, inspector, lectivo, óptimo…) se tenha optado pela supressão obrigatória e fim da dupla grafia (optando-se neste caso pela grafia brasileira), noutros casos — tão frequentes como os primeiros —manteve-se a dupla grafia!

Se o critério fosse meramente o quantitativo, então faria sentido, isso sim, mudar todas as palavras (ou seja, pouco mais de 1%…) para grafia única, e, nesse caso, isso sim, reforçaria a tese conspiratória de que «as editoras brasileiras querem invadir o mercado nacional baixando os custos, produzindo edições com uma ortografia unificada». Mas mesmo neste caso, o argumento seria falacioso: não é só a ortografia que é diferente, mas os vocábulos também são, e estes são ainda mais significativos, pois variam de região para região — no Brasil e em Portugal. Já nem falando na preferência brasileira pelo gerúndio quando em Portugal se favorecem os infinitivos. Ora este é um acordo ortográfico e não sintático e semântico. Sejamos honestos: as editoras brasileiras não são «os maus da fita» — até porque no Brasil o acordo ortográfico é tudo menos consensual! Se quiserem continuar a editar em português de Portugal, vão sempre ser obrigadas a rever a escolha dos vocábulos e da gramática, e isso continua a implicar uma edição adicional para Portugal — o acordo ortográfico em nada evitará isto.

Então temos, isso sim, de olhar para as «teorias da conspiração» com mais base justificativa. E nestes casos eu uso o velho critério americano: follow the money.

Então quem sai a ganhar — financeiramente — com a mudança do acordo ortográfico?

  • Todas as edições escolares têm de ser revistas e re-editadas, caindo o ónus dos custos sobre os pais, que vão ser obrigados a comprar novos livros para os seus filhotes. Isto dá a ganhar às editoras nacionais cuja subsistência vem principalmente das edições de manuais escolares; contam-se entre estas as maiores editoras nacionais.
  • Como todas as leis têm de ser redigidas de novo, as tipografias que editam o Diário da República — assim como todos os livros, manuais, etc. que circulam nos ministérios e institutos — vão beneficiar enormemente desta re-edição maciça de textos. Indirectamente, isto vai beneficiar todas as actividades acessórias: mais papel será gasto (bom para a Soporcel!), mais tinta, mais contratações de serviços a designers gráficos, etc. Isto significam novos contratos ou a revisão — por alto — dos contratos existentes. Evidentemente isto movimenta muita gente! E estes custos, claro, serão suportados pelos contribuintes com os seus cada vez maiores impostos…

De resto não vejo grande interesse comercial no acordo ortográfico. Mas como é sabido, Portugal produz cerca de 50% da pasta de papel a nível mundial; é uma das nossas principais indústrias. Por sua vez, as editoras, ao fim de décadas de torpor económico, começaram a mostrar sinais claros de que os portugueses passaram a comprar mais livros (mesmo que não os leiam!); isto reforçou a ideia de que apostar na edição é um bom negócio (ao contrário das décadas de 1980 e 1990, em que a edição era algo feito com amor e carinho e espírito de sacrifício, pois raramente era rentável…) e catapultou as editoras para cima da linha de água das empresas «economicamente interessantes» em Portugal. Agora é torná-las em gigantes — e nada como criar um mecanismo legal que permita que estas passem a ganhar balúrdios durante estes anos de crise. Até é justificável meramente do ponto de vista político: as editoras, tipografias, etc., graças ao trabalho acrescido, contratam mais pessoas, consomem mais bens e geram crescimento económico artificial num sector historicamente frágil. Logo, nesse sentido, não é uma má medida…

Criticar o Acordo Ortográfico «porque não gostamos dele» é fácil. Todos o fazemos diariamente. Mas é preciso um pouco mais para o refutar, rejeitar e exigir que seja revisto. Na minha perspectiva, há três fortes razões para o fazer:

  1. O processo de «imposição» do Acordo Ortográfico, que ninguém quer de ambos os lados do Atlântico, não foi nem sujeito a debate, nem democrático, ao contrário do que o texto da lei pretende. A título de exemplo, faço parte de organizações de autores que sempre se pronunciaram contra o acordo; nem sequer a opinião destas foi tomada em conta… já nem falando do público em geral ou dos pais cujas crianças estão confusas com a adopção do «novo» acordo e já nem sabem como é que se escreve português…
  2. Os critérios para a redacção do texto do acordo não têm credibilidade científica; logo, o recurso a peritos de uma Academia das Ciências para a sua redacção não tem validade política. Ou os «peritos» mostram que são capazes de um trabalho com consistência científica, e, nesse caso, o texto em questão deve estar sujeito a todos os processos de debate e refutação científica existentes, ou, se o texto é apresentado como uma opinião dogmática, deve então ser debatido de forma aberta e democrática. Agora não se pode é atirar com uma lei baseada em alegados pressupostos «científicos» (para evitar o debate aberto e limitá-lo à opinião de peritos) e assumi-la como dogma: seria como se o Estado português consultasse algumas organizações religiosas e impusesse o Criacionismo nas aulas de biologia, justificando que «tinham consultado uns peritos e, baseado nessas opiniões, tinham tomado a decisão a favor do Criacionismo». Este acordo ortográfico está para a língua portuguesa como o criacionismo está para a biologia.
  3. Seja qual for o acordo ortográfico que esteja em vigor, não é legítimo que os custos da implementação do mesmo seja pago por quem mais protesta pela sua entrada em vigor. Se efectivamente são as editoras que querem o Acordo Ortográfico, então devem ser elas a oferecer os manuais escolares aos pais! (Acabava-se o AO em três tempos!!) Se é preciso mudar todos os textos legislativos retrospectivamente por causa do novo AO, então não se deve cobrar esses custos aos contribuintes — que seja a Academia das Ciências a pagar a factura! 🙂

Se quisermos aproveitar o trabalho feito, sem sermos obrigados a sofrer as consequências nefastas — culturais e económicas! — do AO, então é muito simples: use-se o texto do acordo actual, mas mantenha-se a dupla grafia, como já estava no acordo de 1986. Um Acordo Ortográfico não implica uma grafia única, mas sim que todas as partes que assinam o acordo concordem em quais são as palavras que têm dupla grafia. E se eu fosse membro da Academia das Ciências usava o mesmo argumento que eles: já que o número destas palavras representa «apenas» pouco mais de 1% do léxico de 110.000 palavras (independentemente do seu uso, claro está!), então manter a grafia dupla é… pouco significativo.

Resolve-se de vez um problema que tem aborrecido 240 milhões de pessoas nos cinco continentes e três oceanos 🙂 E o custo para os contribuintes é zero. Melhor do que isto, nem nas lojas dos chineses…

Nem peço mais do que os brasileiros pediram ao seu Congresso em 2009: que se reveja o acordo… e para isso são precisas as 35.000 assinaturas.

Ironicamente, ao visitar o site da Academia de Ciências de Lisboa, reparei que não é usada consistentemente a nova ortografia! Alguns textos publicados no site já a adoptam, pelo menos parcialmente, mas nem sequer são a maioria. Ou seja, nem sequer a Academia acredita no Acordo Ortográfico… 🙂 I rest my case.

25 pensamentos sobre “Ainda o Acordo Ortográfico

  1. Excelente texto, espantoso trabalho, preciosa militância!

    Obrigado, Caro companheiro de luta.

    Um abraço.

    P.S.: partilhado nos sítios da ordem (3 Facebook+Twitter) mas, se me permite a sugestão, poderia criar uma “note” no FB reproduzindo o texto.

  2. Finalmente uma opinião a sério sobre o acordo ortográfico. Infelizmente, receio que já venha tarde — toda aquela história da imposição do português do Brasil e do lucro das editoras brasileiras acabou por ter uma grande influência no resultado final, ao afastar as pessoas de bom senso que costumam pensar antes de embarcar em histerias…

  3. Acho que não vem tarde. Como tem sido comentado no Facebook e noutros lados, agora que os pais começaram a ver o novo AO a ser aplicado às suas criancinhas, baralhando-as completamente — e nem sequer conseguindo ajudá-las a escrever português — centenas de milhar de portugueses estão a «despertar» para a realidade de viver com este AO. Com isso pode ser que comecem de novo os protestos. A abolição da ortografia em vigor é só para 2015. Até lá, pode-se sempre reverter o processo ou adiar a sua «obrigatoriedade» ad aeternum. É só uma questão de recolher assinaturas.

  4. Gostei muito do seu artigo que desmistifica uns bons pontos que nem sempre são tomados em consideração.
    No entanto há uma coisa mais que eu gostaria de acrescentar/alertar.
    O facto é que, mesmo que não tenha sido intenção inicial do Acordo, uma consequência prática será efectivamente o “abrasilerar” do Português. Isto porque, hoje em dia e cada vez mais, um factor que tem uma influência decisiva a nível internacional nas línguas (e basicamente em toda a cultura dum país) é a Internet.
    Ora acontece que quando o Português do AO passar a ser uma única língua para a comunidade internacional (e pelo visto para a Internet já o é, ou pelo menos para a Google e Wikipédia… e sabemos o peso que isso tem) a questão das duplas grafias, preferência por certos tempos verbais e certos vocábulos será uma não-questão!
    E porquê!? Porque na hora de escrever o que quer que seja, será sempre optado por escrever da maneira que “agrade a mais gente” e essa “mais gente” não está em Portugal, mas sim no Brasil.
    Se investigarmos um pouco (e nem é preciso muito) veremos que qualquer artigo da Wikipédia em Português foi alterado para “Acordês” ( embora eu desconfie que o artigo em Português de Portugal foi simplesmente apagado em detrimento do que estava em Português do Brasil).
    Ora o problema é que não se teve em consideração, nem se terá, nem sobre quais os vocábulos preferidos pelos Portugueses, nem quais os tempos verbais… NADA!
    Repare neste dois, apenas dois exemplos em milhões: http://pt.wikipedia.org/wiki/Futebol (a 24/09/2011) e http://pt.wikipedia.org/wiki/Etimologia ( a 24/09/2011). O que diz lá: “é um desporto de equipe jogado entre dois times de 11 jogadores” ; “É jogado num campo retangular gramado” ; “Não podemos esquecer também da palavra moleque”…Os exemplos sucedem-se uns aos outros!!!
    O efeito prático é que com a desculpa de língua unificada, o Português de Portugal foi APAGADO(!!!) da Internet em detrimento do Português do Brasil! E só há tendência a piorar. Imagine que qualquer pessoa pesquisa qualquer coisa na Internet, o resultado que obtém é uma página da Wikipédia onde está tudo escrito com termos brasileiros, seja formas verbais, vocábulos ou o que quer que seja, porque agora Português só há UM…E mesmo que não tenha sido a intenção original, a verdade é que para todos os efeitos, SE o Acordo for avante, o Português passará a ser só um sim, mas será o Português do Brasil.

    • Não é bem o “Português do Brasil”… como disse, os brasileiros também protestam porque este acordo não respeita a ortografia brasileira actual. É um Português “artificial” que na realidade não é escrito em parte nenhuma do mundo 🙂 Mas de facto houve mais ortografia brasileira que “sobreviveu” ao acordo.

      Quanto ao seu apontamento do que se passa na Wikipedia… praticamente desde o início que a esmagadora maioria do conteúdo na Wikipedia foi sempre escrita e moderada por brasileiros, dado que eles são, de facto, vinte vezes mais do que os portugueses… não se trata de “apagar os textos antigos em português de Portugal e substituí-los por português do Brasil”, mas sim o simples facto que há vinte vezes mais brasileiros a escreverem vinte vezes mais artigos na Wikipedia. Não há aqui (ainda) nenhuma conspiração.

  5. Claro, tem razão em relação aos conteúdos. Sempre existiram mais brasileiros a escreverem artigos na Wikipédia e sempre existirão.
    Mas o que eu aponto não é esse facto. É antes o que daqui derivará, porque a partir de agora quando forem escritos artigos na Wikipédia, ou outros meios de comunicação/divulgação internacional será sempre optada por usar a versão “mais Brasileira” do Acordo (por força dos números). Ou seja, não será apenas 1.6% de palavras que alterarão para Portugal, mas sim essas e mais o conjunto todo de vocábulos, tempos verbais preferenciais e expressões que só são usadas no Brasil. Porque simplesmente isso será assim a nível internacional…Não penso que quando forem redigidos artigos científicos, Actas, documentos oficiais da Comunidade Internacional etc. etc. etc. eles escreverão “receção” (como temos nós que escrever agora) ou todas as duplas grafias, isso nunca será feito. Será sempre dada prioridade à grafia Brasileira, agora “oficializada” como Português oficial.
    Repare, eu não tenho nada contra os Brasileiros, muito pelo contrário. Mas creio que as diferenças na língua já (há muito) atingiram o patamar do irreconciliável, seguiram linhas distintas que nenhum Acordo pode mais unificar…Nem deveríamos fazer isso, cada país tem o direito de seguir o seu caminho. E com este Acordo que ninguém quer ( excepto a quem interessa, claro), para além de tudo aquilo que altera (maioritariamente do nosso lado do Atlântico) e cai mal na população de ambos os países estaremos a abrir uma porta perigosa que, provavelmente, muito pouca gente se apercebeu ainda.
    Não creio na teoria da conspiração, até porque certamente não é ideia de nenhum Brasileiro apagar o Português de Portugal, mas temo que o efeito prático possa ser…ou melhor, será certamente o atropelamento da nossa língua, por força de números, capacidade financeira ou prestígio internacional.

  6. Muito obrigado pelo seu artigo amigo Luís. O Carlos Gonçalves tem razão no que respeita ao atropelo do Português-Europeu. Eu diria mais: é atropelo e fuga! Note-se que se chega a escrever deliberadamente “Presidenta” para um discurso oficial de tomada de posse, e deu claramente para perceber a surpresa da presidente eleita ao deixar escapar uma pequena gargalhada. Como diz o Carlos, a separação é já muito antiga. Eu acredito que possa valer a pena um esforço de reconciliação, mas antes mesmo de o encetar seria proveitoso saber quais são os propósitos dos Brasileiros nesta matéria. Note-se que os acordos de 1911 (o que veio conferir maior ambiguidade ao Português) e 1945 foram apenas implementados deste lado do Atlântico. Seja qual for a motivação de fundo deste AO, parece-me um insulto à nossa cultura milenar e à inteligência em geral, tanto de Portugueses como de Brasileiros!

  7. Li o seu artigo atentamente, e considero-o uma peça esclarecedora, de grande consistência e muito bem elaborada, que deveria ser lida pelo maior número possível de leitores. Permita-me que também faça a sua publicação no Facebook, com a devida identificação do autor. Um grande agradecimento por este seu trabalho.

  8. Caro Carlos Gonçalves, peço-lhe desculpa! Percebi mal e tem de facto razão (ou se calhar só tem razão de fato… 😉 ): aos poucos nota-se que mais e mais vocábulos brasileiros (e de que região??) se tornam mais frequentes no português de Portugal, justamente porque, como apontou, há muito mais publicação (online) de textos brasileiros…

    Claro que esta «contaminação» evidentemente existe por todo o lado. Por exemplo, aos poucos perde-se a palavra «aloquete» porque no Sul de Portugal se utiliza «cadeado», e publicam-se muito mais textos usando «cadeado» do que «aloquete», pelo que, mesmo no Norte de Portugal, haverá a tendência deste vocábulo começar a desaparecer. O mesmo para «semelha» em vez de «batata», etc.

    Por outras palavras, no passado, eram os falantes da variante regional do português que definiam os vocábulos que empregavam no seu dia-a-dia e que passavam os mesmos às gerações futuras. Hoje, como a edição está mais centralizada, um pequeno grupo impõe os seus vocábulos — e as suas preferências gramaticais e ortográficas — à maioria, simplesmente porque publicam mais textos. Nesse sentido, o facto (ou o fato…) de haver mesmo muito mais material publicado usando a ortografia, preferência gramatical e vocabulário preferencialmente utilizado no Brasil (ou pelo menos em certas regiões mais populosas do Brasil) vai irremediavelmente influenciar a totalidade dos 240 milhões de pessoas que falam português — vai ser a referência.

    E o actual Acordo Ortográfico só vai contribuir para que essa influência seja maior e mais rápida, especialmente porque vai ser impossível de distinguir ortograficamente se o autor de determinado texto é português, brasileiro, angolano, cabo-verdiano, etc… as referências passarão, pois, a ser maioritariamente brasileiras…

    Muito bom ponto de vista, obrigado pela sua contribuição!

  9. Independentemente da qualidade dos argumentos apresentados, esperar-se-ia, neste manifesto anti-AO, um uso irrepreensível da língua (neste caso, regida pela Convenção Ortográfica de 1947). Assim sendo, fica a sugestão:
    Substituir:
    a) auto-proclamado por autoproclamado. Regra anterior ao AO: “Com o prefixo auto usa-se hífen quando o segundo começa por vogal, h, r ou s.”;
    b) impôr por impor. Regra anterior ao AO: “Pôr leva acento para não haver confusão com por, mas todos os seus compostos escrevem-se sem acento; compor, impor, repor, etc.”;
    c) re-editadas por reeditadas. É (e já era) um dos prefixos (como des e in) que aglutina sempre.
    Quanto à causa que defende… boa sorte!
    Notas:
    1. Não sou da Academia nem de nenhuma editora. Embora discorde de alguns pontos do NAO, parece-me que a sistematização das regras do hífen (onde o meu caro amigo se esticou ao comprido!) era necessária. Era necessário o Acordo? Não sei se era, mas não me parece que ponha em risco a integridade da Língua Portuguesa como, de forma oca e estafada, se diz.
    2. Mesmo admitindo a justeza de várias das considerações que tece em relação ao processo de “imposição” do AO (nomeadamente em relação à Academia), já reparou que se quisermos ir com rigor ao fundo das questões relativas às mudanças da língua, teremos de referendar também o desaparecimento, em 1911, do ph, th e ch e quiçá restaurar a lucta, a victória e o prompto? E que dizer das muitas centenas de palavras que, levianamente, mudaram de género em relação ao latim?

    • Lamento não lhe ter respondido mais cedo (ando distraído…) mas só queria concordar consigo. O facto de eu não saber escrever português correctamente não é um argumento contra o actual acordo ortográfico, mas mostra bem a confusão que já vai na minha mente… 🙂

      No entanto, isso não quer dizer que não seja a favor de uma normalização de *algumas* das regras. A hifenização é um bom exemplo; recordo-me de que a palavra “infra-estrutura” (que uso muito em termos técnicos), actualmente “infraestrutura” até já se chegou a escrever “infrastrutura”…

      Talvez o que mais me aborreça no novo acordo é a mudança de filosofia subjacente: de uma ortografia de regras (mesmo que muitas não fizessem sentido) à qual existiam excepções que era necessário decorar, para uma ortografia de excepções com poucas regras. O espanhol (ex-castelhano) é um exemplo do primeiro tipo de ortografia (e mesmo em termos de gramática é muito regular): escreve-se como se lê. O alemão e o japonês têm filosofias semelhantes: há regras, sim, mas poucas (ou nenhumas) excepções. Dominando-se as regras, não há mais nada a decorar. O inglês situa-se no outro extremo da escala: quase que não há regras — cada palavra é uma excepção, e há que conhecê-las todas, porque raramente existe uma lógica. O que se obteve neste acordo ortográfico foi um afastamento do princípio espanhol da regularidade (que torna uma língua mais fácil de escrever) para a aproximação do princípio inglês da excepcionalidade (em que é preciso decorar, palavra a palavra, como é que esta se escreve). Pessoalmente, apesar de ser anglófilo e escrever diariamente mais em inglês do que em português, não acho que o modelo inglês da excepcionalidade da ortografia seja um modelo válido a seguir. Tenho a certeza que estudos no meio anglo-saxónico, comparando-os com estudos no meio espanhol, mostrarão que os falantes das respectivas línguas escrevem muito melhor o espanhol do que o inglês…

  10. Os problemas que o AO90 traz:
    1. O AO90 afasta a Língua Portuguesa da matriz etimoógica greco-latina
    2. A eliminação das consoantes mudas afasta a Língua Portuguesa das outras Línguas europeias
    3. As famílias e as editoras vão ter de deitar fora os manuais escolares impressos na ortografia anterior ao AO90 e comprar / imprimir manuais novos
    4. Todas as leis em vigor têm de ser revistas e revertidas para a ortografia actual; todos os documentos legais anteriores têm de ser revistos e reimpressos
    5. Por causa do AO90 vamos escrever ‘fato’ em vez de ‘facto’
    6. Por causa do AO90 vamos escrever “o cagado anda de fato na praia”
    7. Com o AO90 Portugal adoptou a ortografia brasileira
    8. Com o AO90 vamos adoptar termos brasileiros

    Quem quiser saber mais sobre estas monstruosidades, pode consultar isto:
    http://emportuguezgrande.blogspot.pt/p/falacias-frequentes-sobre-o-ao90.html

    • Não concordo a 100% com os pontos 7 e 8. Estamos a adoptar uma ortografia que até os brasileiros rejeitam! O exemplo mais frequentemente dado — e que é um exemplo notório — é que todos os hotéis em Portugal tenderão a usar a palavra «receção», quando mesmo no Brasil essa palavra sempre se escreveu «recepção» e não irá mudar com ou sem AO90.

      Pessoalmente, posso nem ser totalmente contra a adopção de «termos brasileiros», no sentido que muitos deles na realidade até são «termos portugueses» do século XVIII que se mantiveram no vocabulário usado no Brasil mas que perderam o uso em Portugal. O problema está na introdução de novos vocábulos que não são nem brasileiros, nem portugueses, nem existem em utilização em lado nenhum, só porque a mudança de grafia potencia a sua utilização «imposta»! Regra geral, discordo da «imposição» da utilização de linguagem contra a vontade das pessoas que a empregam. Há regionalismos em todos os países lusófonos; há formas gramaticais que são mais frequentes em certas zonas mas não em outras; há expressões que são comuns a umas regiões mas perderam o uso noutras. Isso é a riqueza de uma língua viva! E não há que ter «vergonha» de que a mesma língua seja empregue de formas distintas por povos e pessoas diferentes. O que sempre me pareceu com este AO (ao contrário dos anteriores) é que o objectivo não foi «simplificar» a ortografia, mas sim um ódio de certos académicos, brasileiros e portugueses, à forma como a esmagadora maioria da população lusófona usa a sua língua, querendo impôr uma «outra» língua à força, aproveitando o «pretexto» de lhes mudar a ortografia…

      Seja como for, é importante ressalvar um aspecto que tem sido muito esquecido. O AO90 é opcional, não obrigatório. É uma recomendação da AR, não uma lei. A lei que está em vigor aplica o AO anterior. A recomendação indica que as entidades e os particulares podem, se assim o desejarem, usar o AO90 na sua comunicação. A entidade Estado «decidiu» usar o AO90, e por isso é que este tem tido mais expressão, mas é uma decisão arbitrária e governamental, não uma imposição legal. Até se podia fazer uma petição (ou mesmo uma ILC) para a entidade Estado abandonar o AO90, bastando para isso o Governo abolir a regulamentação que a introduziu (no Governo passado), o que nem precisa de ir à AR…

  11. Devia acrescentar aqui, uma vez mais, para quem ainda pensa que o AO90 é uma «guerra» entre Brasil e Portugal para relembrar que os brasileiros (enquanto sociedade civil) são profundamente contra o AO90, e que o número de pessoas no Brasil activamente a tentar combater a sua introdução no Brasil ronda os milhões, comparado com as dezenas de milhar do lado de cá do Atlântico. Em vez de «atacarmos» os nossos irmãos lusófonos do outro lado do Atlântico, devíamos juntar as nossas tímidas vozes à força do movimento anti-AO90 no Brasil, e fazer passar a mensagem que ninguém quer usar o AO90 — seja em Portugal, seja no Brasil, seja em Angola ou Moçambique.

    Talvez a diferença mais notória seja uma de atitude. Por cá, resmungamos mas submetemo-nos a uma certa «inevitabilidade» da utilização do AO90 — quando nem sequer é uma «lei» mas apenas uma «recomendação». Do lado brasileiro, combate-se a adopção do AO90 nem que seja recusando-se a usá-lo. Os brasileiros não têm nem medo, nem vergonha, de se recusarem a usar um AO com que não concordam. Nós devíamos fazer o mesmo.

    Se amanhã todos os jornalistas da RTP se recusassem a usar o AO90 nas suas peças, e fossem solidários uns com os outros, o que é que o Governo fazia? Despedia-os todos?

    Falta capacidade para se ser inovador na forma de protesto. Lembro-me, por exemplo, muito bem da «greve dos picas» nos tempos do cavaquismo. Quando foi introduzida a obrigatoriedade das empresas assegurarem os serviços mínimos em tempo de greve, as greves deixaram de ter tanto impacto, já que os utentes dos serviços continuavam a usufruir destes, era apenas mais caro para as empresas públicas (e, logo, por consequência, eram os contribuintes que tinham de pagar os custos acrescidos…). Então por uma vez fez-se uma greve inovadora: os cobradores, «picas», funcionários de bilheteiras (nessa altura haviam ainda poucas máquinas automáticas) apresentaram-se todos ao serviço mas recusavam-se a vender bilhetes e/ou a controlá-los. Como toda a gente estava no seu posto de trabalho, não havia forma de os «substituir» para «assegurar serviços mínimos». Como legalmente a greve tinha sido anunciada, não se podiam despedir os empregados por «justa causa» por não estarem a fazer o seu trabalho devidamente (afinal de contas, uma greve é justamente quando os funcionários se recusam a trabalhar!). O impacto foi brutal, e, pior que isso, dado que as pessoas efectivamente se apresentavam ao serviço, podiam continuar assim por eternidades — fazendo com que a empresa não recebesse dinheiro. Mas fazendo com que nenhum utente fosse prejudicado. E garantindo que ao fim do mês os funcionários recebiam o seu dinheiro, já que «picavam o ponto» e estavam no seu posto de trabalho.

    Em pânico, o governo da altura acedeu rapidamente à vontade dos trabalhadores — e proibiu as «greves de zelo», coisa que, a meu ver, é inconstitucional: o direito à greve é constitucional e a greve, desde que não assuma formas violentas, não é obrigatoriamente determinada por «decreto governamental» sob a forma que deve tomar. O direito à liberdade de expressão garante às pessoas que se possam manifestar da forma que quiserem (lá está, desde que essa forma não seja violenta).

    Por isso, há que ser criativo.

    Havia de ser lindo ver os rodapés do telejornal da RTP a dizerem [Este rodapé não foi escrito porque nos obrigam a escrever numa ortografia com que discordamos]. Ou ver uma edição de um jornal só com as manchas na maquete e as fotografias — e a publicidade — e apenas parágrafos dizendo: [Este artigo não foi publicado porque o autor se recusou a escrever com o novo acordo ortográfico]. São iniciativas assim que realmente chamariam a atenção 🙂

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